Catedral de Santiago de Compostela

A Catedral de Santiago de Compostela é escassamente conhecida a basílica asturiana que antecedeu a monumental catedral românica que ainda se conserva. É possível que a um edifício de nave única, construído na confluência do mausoléu romano e por patrocínio do rei Afonso II, tenha sucedido um templo basilical de três naves nos anos finais do século IX, já por intermédio de Afonso III. Este monarca ofereceu ainda à nova basílica uma cruz semelhante à mítica Cruz dos Anjos, sinal inequívoco do patrocínio régio asturiano, mas também do vínculo religioso que definitivamente unia Astúrias e Galiza, Oviedo e Compostela, na lógica daquele primeiro reino peninsular após a invasão muçulmana de 711.


O magnífico edifício românico que substituiu aquele complexo começou a ser edificado em 1075, pelo bispo Diego Peláez.
Dadas as dimensões do empreendimento, foi necessário destruir não só os conjuntos pré-existentes, como parte do próprio mosteiro de São Paio de Antealtares, circunstância que obrigou a uma composição entre o bispo e o abade, celebrada em 1077.


A nova cabeceira foi finalizada em 40 anos, tendo já sido inaugurada pelo bispo Diego Gelmírez, em 1117. Para além do deambulatório, que permitia uma multiplicação de altares nos circuitos processionais no interior da catedral, a capela-mor concentrou o essencial do investimento, na medida em que se posicionava sobre o mausoléu de origem romana e sobre a cabeceira da basílica pré-românica, o que pressupunha a criação de um espaço elevado. Para monumentalizar ainda mais o altar, Diego Gelmírez colocou um baldaquino a que se associavam duas tábuas particularmente estudadas pelo historiador da arte Serafín Moralejo: uma de ante-altar e outra de retro-altar, que formavam um verdadeiro relicário e assim ocultavam o túmulo de Santiago, sendo o conjunto ainda rematado por grades que impediam o acesso, mas não a visão.

Atrás do altar, pela primeira vez, estruturou-se um espaço reservado à oração dos peregrinos, onde estes, segundo o Códice Calixtino, podiam assistir à missa matinal, especificamente dirigida para os viajantes longínquos que chegavam à cidade. É possível que o dispositivo litúrgico encontrado por Gelmírez fosse decalcado do cerimonial observado na basílica de São Pedro, em Roma. A proximidade entre o bispo de Compostela e Calisto II foi uma evidência e são muitos os testemunhos que atestam as vantagens desse relacionamento. Por exemplo, em 1120, Compostela foi elevada a arcebispado e Gelmírez estabeleceu para o seu corpo coadjuvante idêntica organização vigente em Roma, nomeando sete cardeais - os únicos que podiam celebrar ofícios religiosos sobre o altar do apóstolo, para além de regerem o sistema paroquial da cidade.

O transepto e as suas grandiosas portas resultam também do labor de Gelmírez. Os trabalhos deviam estar praticamente finalizados em 1112, ano em que se destruíram os últimos muros da basílica asturiana. As obras seguiram rápidas e certamente com abundante financiamento, pois dez anos depois finalizava-se o transepto Norte e, antes de 1135, terminavam as obras na fachada meridional. Para além do esforço que representava a edificação do monumental transepto de três naves e dotado de tribuna, o bispo patrocinou também a construção do palácio episcopal, da fonte do paraíso e da casa da moeda, elementos que transfiguravam radicalmente e irreversivelmente o locus de origem asturiana.


As monumentais portas do transepto, datáveis ainda da segunda década daquele século XII, foram de transcendental importância. Como sublinhou o historiador da arte Manuel Castiñeiras, com estas duas obras Compostela passou de periferia europeia a centro de criação da arte românica, pelo carácter experimental, monumental, narrativo e simbólico daquelas realizações. Apesar de hoje bastante transformadas, foi ainda possível reconstituir virtualmente ambas as portas, que ilustravam distintas aproximações ao universo românico e, muito particularmente, à reforma gregoriana, da qual Gelmírez foi um destacado protagonista.


A Porta Francígena, também conhecida por Porta do Paraíso, conferia destaque a Adão e Eva e à expulsão do Paraíso, princípio metafórico da tragédia humana e, simultaneamente, princípio da errância da condição humana, o que transformava Adão no primeiro peregrino. À sua frente, foi construída em 1122 a Fonte do Paraíso que, com as suas quatro bocas, simulava os quatro rios do Éden. Os peregrinos que aqui chegavam podiam lavar-se antes de entrar na catedral. Por contraponto, a Porta das Platerías resumia a redenção através da Paixão de Cristo. Foi também conhecida por Porta do Bispo, pois situava-se nas proximidades do palácio de Gelmírez e diante da qual o prelado exercia publicamente a justiça. As duas portas eram, assim, dialogantes entre si, pelo princípio e pelo fim da narrativa, mas também ligando o Antigo e o Novo Testamento.


O notável e experimental programa iconográfico das portas do transepto foi mais um instrumento do processo de afirmação do culto a Santiago como elemento estruturante de toda a cristandade. Foi ao serviço dessa ambição que o bispo Diego Gelmírez liderou vários processos, em muitos tabuleiros de jogo e todos de grande alcance simbólico.
Uma das mais notáveis realizações do seu tempo foi a redação do Códice Calistino, assim chamado por ter sido atribuído ao próprio papa Calisto II. Foi o primeiro guia dos peregrinos e essa era a sua missão principal: ser um produto de fácil circulação, que pudesse chegar aos múltiplos ambientes religiosos de então.


É possível que tenha sido concebido nos círculos de Diego Gelmírez, sendo consensual a sua redação até 1137, e compõe-se de uma codificação de muitos relatos e legendas que circu-lavam. O livro V, e último do códice, é o mais importante para os peregrinos, pois integra as etapas do Caminho Francês, indicações para os caminhantes e um primeiro panorama daquilo que os caminhantes podiam encontrar ao chegar a Compostela.
As obras na catedral estiveram paralisadas entre 1135 e 1168, mas arrancaram a partir dessa data com o famoso mestre Mateus à frente do estaleiro, a quem se deve o Pórtico da Glória.


A construção desta entrada a ocidente marcava um eixo longitudinal no templo, que se sobrepunha à anterior lógica gelmiriana, a qual acentuava um eixo Norte – Sul, através das portas do transepto. Por outro lado, a dedicação genérica do pórtico ao Juízo Final completava o discurso iconográfico daquelas anteriores entradas, fazendo com que o acesso à catedral pelo lado ocidental se instituísse como verdadeiro cenário do paraíso que os crentes encontrariam depois do dia do Juízo Final.


O apóstolo fazia parte do pórtico ocidental, estando esculpido no mainel do portal, sintomaticamente sobre um capitel que tem uma representação da Trindade (nome da porta da muralha em frente à catedral). É um Santiago entronizado, com bordão em forma de tau, que é no fundo o báculo que relaciona o apóstolo com os bispos e arcebispos compostelanos.


O restante programa iconográfico ilustrava o último dia da humanidade e a glória de Cristo. No portal da esquerda, a descida ao limbo, ato que resgatou para o universo cristológico os patriarcas do Antigo Testamento. À direita, protagoniza-se o Juízo para todo o sempre, no fim dos tempos contados pela medida dos homens. No entanto, há algo distinto nesta figura de Cristo: ao contrário do que foi habitual no século XII, o Filho de Deus apresenta as chagas da sua Paixão, numa atitude que é acompanhada por oito anjos que transportam oito instrumentos do Seu martírio. Sentia-se já aqui o caminho para a espiritualidade gótica, em que a humanidade de Cristo se vai paulatinamente sobrepondo ao Juiz do Dia Final, distante e intemporal figura de um verdadeiro rei celeste.


A última intervenção românica foi a colocação da grande imagem de Santiago no altar-mor, em 1211, aquando da sagração da catedral. Essa gigantesca estátua ainda existe, embora modificada e redecorada em época barroca. Não se sabe exatamente quando teve início o costume de os peregrinos a abraçarem, como sucede ainda hoje. Uma iluminura holandesa de finais do século XV ilustra essa liturgia específica do abraço ao apóstolo. E ainda que não se possa associar ao tempo românico esse tão enraizado costume, não restam dúvidas que a colocação da imagem de Santiago no altar – espécie de duplo pétreo do verdadeiro corpo, oculto dos olhares de todos – marcou para sempre a forma como o apóstolo foi venerado. Em cem anos, a catedral de Compostela tornou a Galiza no centro do mundo para a cristandade.

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